sábado, 31 de maio de 2014

Crónica de um hoje



Hoje é o aniversário de um alguém. Aliás, todos os dias é o aniversário de alguém. Alguém com rosto, alguém que nasceu desejado, amado, protegido. Alguém que cresceu sem algemas, alguém que vivenciou os tempos dos finais do século passado e os alvores deste. Alguém que não se deixou escravizar pela publicidade das marcas. Alguém a quem o destino quis deixar a sua marca cravada a ferro e fogo…
É o filho de alguém que hoje sente as picadas do desconforto, da revolta, da bruma que lhe escurece o coração, da claustrofobia de túneis cada vez mais longos e estreitos.
É o filho de alguém que tanto deu de si a este país, a esta região. A estes filhos raros, numa paisagem de sonho mas onde, cada vez mais, os sonhos são rechaçados. Pobres, muitos, demasiados. Por isso emigram, o céu já não é o limite. O céu de deuses menores, metáfora do inferno, mercado fervilhado no templo dos vendilhões, encurralou-os.
Hoje, especialmente hoje, não me apeteceu bordar a escrita de figuras de estilo, muito menos mascarar a dor crónica, instalada há muito, mas que, por força de um eu fortalecido, se remete a um silêncio cauteloso. Não vá emudecer de vez, com o susto troante de um desarranjo emocional.
Hoje, especialmente hoje, escrevo a crónica de um hoje que não se esgota no agora. Esperança? Por quanto tempo fará parte da minha idiossincrasia? Parece-me que também não me fará falta. Sou pouco fiel a nomes abstratos quando se trata do caminho real, independentemente do material de que é revestido. Ações concretas, precisam-se! Parafraseando Eugénio de Andrade “É urgente o amor”, eu direi, é urgente o amor induzido na dignidade de possuir um qualquer objetivo na vida, é urgente pensar as pessoas.
Hoje, especialmente hoje, desejo-te um dia feliz e que o desconcerto de tantos não desconcertem o que levei anos a esculpir. E orgulho-me. Tu sabes! Não? Então é porque confio mais nos gestos do que nas palavras. Por vezes. Algumas vezes. E hoje, especialmente hoje…

Odete Ferreira, 31-05-2014 – Imagem - Obra de Nadi Ken 

domingo, 25 de maio de 2014

Recolhimento


Movo a cadeira de forma a que o meu campo visual não se disperse, ficando balizado pelo espaço natural que os ramos de duas árvores habilmente construíram. Sou agora uma objetiva privilegiada, focando a nesga do largo lago artificial do meu rio apenas mais escurecido, uns metros, na sua centralidade, como se os cardumes se tivessem ali concentrado; águas mansas permitindo que as nuvens líquidas o emoldurem, tornando-se margens naturais.
Sinto-me harmonizada, quiçá, exultando a dopamina da alma.  E é na semântica da alma que a minha última hora se reflexiona. Não questiona. Nem sequer procura respostas. Apenas monólogos mentais…
Educada na matriz judaico-cristã, o vocábulo sacrifício era o pão nosso de cada dia. Não o flagelo mas aquele agir tácito de aceitação de constrangimentos. Não era a minha vontade a comandar-me antes um coletivo de juízos enraizados. Frequentar a catequese, fazer a 1.ª comunhão, a solene, era imperativo. Retifico, uma festa. As minhas festas…
Paulatinamente, estar presente em riuais religiosos foi rareando. Dispenso-me de enumerar razões. Mas hoje quis estar. Organizei-me quanto aos horários e tarefas. E, como sempre, quando assisto/participo numa missa, o meu lado escrutinador, acelera. Dou por mim a analisar cada gesto, cada postura corporal, a magicar que história de vida haverá em cada um dos presentes, a encantar-me com os momentos corais, a surpreender-me com este empenhamento partilhado. Não há regressões. Não lamento os momentos em que ali não estou mas vivo os que, de mote próprio, me suscitam este encantamento.

 É a arte que me deslumbra. Afinal cada espaço pode ser uma exposição tão diversificada qunto a natureza artística de cada ser ousar cinzelar.

Odete Ferreira, 30 -04-14
(Amigos, por motivos pessoais, informo que esta semana demorarei um pouco mais a visitar os vossos espaços. -28-05-14)

domingo, 18 de maio de 2014

Todo o espaço é um não tempo


 Pintura de Hélio Schonman

Há tempo perdido?
Como sabê-lo se os instantes
não têm o mínimo interesse em avaliar?
Procura a cadeira do analista
e desinteressada questiona.
Talvez percebas num relance de olhar
que a pergunta soa descabida.

Na verdade todo o espaço é um não tempo.
Foi apenas questão de investimento
para tu  e outros viajarem no recolhimento
dos instantes gravados de um tempo indiferente.

É cómoda a chaise longue.
Permaneces inerte. Relaxas.
Vozes, sons, música de mar.
Entras na viagem
de um sentir infinito, colorido…
Há flores nas ondas semeadas
e todos o pássaros
ousaram aventurar-se
e vieram soltar-se
(talvez queiram libertar-se
do espaço delimitado
por alguns deuses menores)
         …
Tempo perdido?
Quiçá invertido
no julgamento alheio…
Deixa-te estar…
É tão bom mergulhar
num sol soalheiro…

OF – 28-03-14

domingo, 11 de maio de 2014

Um outro que não me é indiferente


Reparo nela: mulher madura, passo firme, vestido sedutor, preto, em decote pregueado… Certamente de bem com a sua aparência, não regateando um olhar atento à silhueta que se espelhava nas montras das lojas rentes ao passeio revestido destes pavimentos industrializados, globalizados que dispensam os mestres calceteiros. Sisuda, neste dia entrecortado de um sol pálido e uma chuva que decidiu achuveirar as copas dos verdes que quase tocam este céu anilado.
Observador atento, sei exatamente para onde se dirige, o tempo que demorará, o que escrevinhará no seu bloquinho preto. Leio-a, sobretudo o olhar: intenso mas desconcertante. Se na minha mente desenho a previsibilidade de alguns gestos, o olhar que comigo conversa nesse encontro de leitura (sim, sei que conversa comigo e com todas as pessoas que a descubram nos seus escritos), provoca-me arrepios. Este ser misterioso adivinha-me os pensamentos, atinge-me a alma! Será algo de sobrenatural?
Levanto-me, desentorpeço o corpo. Releio. Já mais racional, mastigo a palavra, o seu conjunto, as frases e, quando me sinto, estou a conversar com a mancha do texto no écran, a sentir a sua presença… Relativizo-me na dimensão deste universo de palavras. Até as normais dúvidas existenciais tomam outro rumo. Basta alargar a semântica lexical…
Raio! Que poder! Acabo por inventar uma profissão: cinzelador vocabular… Hum! Um dia besunto-me de coragem e falo-lhe. Acho que vai gostar de saber desta ideia…

Odete Ferreira
Foto - autor desconhecido

domingo, 4 de maio de 2014

Gosto de te ver aí sentada

Gosto de te ver aí sentada

Gosto de te ver aí sentada. Hoje enfeito-o. Uns verdes de um arbusto, as rosas das roseiras rasteiras do jardim. Daqui a pouco receberás,em simplicidade de gestos, o tosco ramo. Ficas sempre sem jeito, entre um meio sorriso e um encanto secreto que vejo refletido no teu olhar. Talvez seja a minha veia fantasista a criar este cenário, mas não o creio. Sempre fui atenta a mínimos detalhes. E, como um filme a três dimensões, situo-te em momentos nossos. Tão reais. Tão cheios de ti, mãe!
Gosto de te ver aí. Raros momentos de repouso das pernas já cansadas… Beijo-te de olhares profundos, silenciosos como o amor da cumplicidade…


Odete Ferreira
04-05-2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Ventos de Maio


Pintura de Josephine Wall
Em regos irrigados de palavras
de adubado e penoso suor,
vislumbro árvores vergastadas
de pequeninas encurvadas.
Roubado seu tempo de meninice,
escravidão que antecipa a velhice.

O pão continua parco. À mesa, uma fina dor.

Em dias envoltos de fantasias
de cheiros sugados nas maresias,
avisto masmorras submersas
de redes e linhas emaranhadas.
Procuras o afago das sereias.
Sôfregas anestesiam tua dor.

O peixe continua caro. À mesa, um canto sofredor.

Em momentos encantados
de versos soltos pintados,
respingo a alma poética
de viagens desenhadas
onde risco itinerários
e sóis de maias e maios.

A poesia continua apetecida. À mesa, ignoro lacaios.

Corre-me este temperado sabor,
ver-te livre, trabalhador,
nascido primeiro de Maio,
ainda que imberbe catraio.

Corre-me um destemperado ardor,
se do baralho do teu senhor,
te vejo na rua descartado,
olhar mortiço no chão rasgado.

Mês de marias, de maias e de maios flor…

OF 
Pintura de Josephine Wall