quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não invoquem o meu nome em vão

 Obra de Josephine Wall

Não me procurem
caçadores de palavras sonantes
e de imagens narcísicas.
Não encaixo nesse perfil,
fachada de edifícios hipócritas
e ruas enfeitadas de falsos sorrisos.

Não me procurem
diretos televisivos à hora certa.
Não sou deste tempo.
Sou génese inicial,
sol sem idade,
raiz primordial da palavra
num antanho por inventar.
Gesto ramificado
nos dedos da mão
e no corpo que te levanta do chão.
Leveza de espírito
encarnado em almas do além.
Batismo de águas abençoadas.
Fonte, rio, mar, emissário.
Barco solidário, arca de Noé,
torrente de atos espontâneos
paridos à luz natural,
em nome da humanidade.
E no silêncio da caminhada,
tu, que não me invocas em vão,
nomeias-me: solidariedade.
E eu vou…

OF – 18-11-15

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Credos na Boca

 Obra de Oleg Shuplyak 
 Acordei com o credo na boca. Literalmente! Nunca me havia acontecido. Rezava o credo e quando tomei consciência de tal, lembro-me exatamente em que parte da oração estava.
Sabemos que, muito do que sonhamos, na minha leiga convicção, advém de algo que nos agrada ou desagrada. Mas, uma oração! Fiquei uns minutos a matutar, chegando à conclusão que até tinha lógica. Pura associação de factos, entrosados com as minhas crenças e as reflexões resultantes de um contraditório mental, na sequência de tudo o que, ao longo da minha vida, foi moldando o meu ser. O credo é, afinal, a mais perfeita paráfrase do nosso “creio”.
De véspera, o debate entre o atual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e o candidato a tal pelo maior partido da oposição, António Costa. E tudo terá vindo em catadupa: a descrença generalizada nos partidos políticos; a progressiva desconfiança da europa comunitária e o questionamento sobre a moeda única; o crescente (mas sempre latente) dos nacionalismos exacerbados e as ideias que lhes subjazem; a permanente inquietação perante tantas ações terroristas, sejam estas de que natureza for. Em suma: o desconcerto, a dúvida, a incerteza…
É este planeta que nos permitiu sermos. E não temos sabido ser. Ao longo dos tempos a arena torna-se cada vez maior. Digladia-se a dignidade a todo o momento. Com golpes estratégicos, encurtam-se as margens. E um rio desgovernado não tem discernimento. Sabemos que é premente regularizar as margens. Só não sabemos por onde começar. Por isso o credo tem cada vez mais sentido.
Odete Ferreira – 06-09-15

Credos na boca 2
“Prognósticos só depois do jogo”. Sempre me causou um certo desconforto este leitmotif futebolístico. Nos dias desconcertados que o país vive, após o resultado das eleições legislativas de 4 de outubro – e que tenho acompanhado intensamente – dou por mim a perceber o seu alcance. Facto que só comprova que, mesmo em termos de linguagem, o radicalismo é sempre uma teimosia só aceitável aos burros com palas nos olhos para não se desviarem do caminho traçado pelo dono. Estou a viver, com o entusiasmo do abril de 74, estes tempos. E sinto-me privilegiada. À data em que escrevo, o acordo da esquerda já fez história. Não sei o que decidirá o senhor presidente da república, embora os cenários não sejam auspiciosos; contudo, sinto orgulho dos que ousaram não ter medo. Evoca-se, frequentemente, os feitos dos portugueses quando deram “novos mundos ao mundo” (1), apesar dos fantasmas personificados pelo velho (2) nos Lusíadas. Partir foi uma ousadia. Com credos na boca. Certamente! Orgulhamo-nos da nossa história, dos heróis de antanho, mesmo sabendo que nada é preto ou branco e que sempre existem interesses por detrás de decisões. Mas, não é o interesse, a curiosidade que nos impulsiona para a frente? Por estes dias não consigo perceber (percebo mas não concebo) os que têm tanto medo de que Portugal “pule e avance como bola colorida entre as mãos de uma criança” (3). Ousemos trilhar outro caminho quando um se revelou tão cheio de espinhos. Este velho continente bem precisa de voltar à escola e aprender outras linguagens.
1 – estrofe 45, Canto II, Os Lusíadas; 2 – estrofe 94, Canto IV, Os Lusíadas
3 – Pedra Filosofal de António Gedeão (no original os verbos estão no presente do indicativo) - https://youtu.be/9r6FqT7F1s0
Odete Ferreira – 12-11-15 

Credos na boca 2 - Adenda
Parece-me que a vida é mesmo assim, uma sequência de adendas. Talvez seja por isso que não tenho apetência por reler escritos; talvez seja também por isso que os dato e os enquadro no local, acrescentando, frequentemente, a circunstância em que ocorreram. Só assim se justificam, a meus olhos. Naquelas circunstâncias tinham vida. Depois sepultam-se e transformam-se em memoriais.
E esta adenda tem a sua razão de ser à luz dos atentados perpetrados ontem, 13 de novembro pelo autoproclamado Estado Islâmico, em Paris. Não para fazer a sua análise, para tal existem pessoas especializadas nestas matérias; apenas para fechar o pensamento que perpassou nos textos “Credos na boca”. Num mundo globalizado, impõem-se soluções globalizadas. Mais do que nunca são necessário líderes com uma formação alicerçada na tolerância e numa forte convicção do bem mundial; que não tomem medidas compelidos pelo imediatismo e sob a natural comoção que nos entra pela casa dentro; que não cuidem apenas dos seus quintais…
Já não é possível manter o orgulhosamente sós. Humildemente, que sejam parte da solução e não do problema. Utópico? Talvez! Mas continuo com os meus credos na boca. Desta vez, esperando que se não se assista a mais uma estratégia retórica para iludir os incautos. Em nome das vítimas inocentes. Em nome da Humanidade.
Odete Ferreira – 14-11-15
Vídeo: Imagine de Jonh Lennon - https://youtu.be/bBW8g64Vzf8

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Dias de pleno direito


Obra de Josephine Wall

Há sempre dias com direito à reflexão. De plena reflexão, ainda que haja horas de tímidos sorrisos e de um disfarçado sentimento de contentamento quando revemos amigos que vemos, praticamente, de ano a ano. E só pelo facto de nos olharmos, celebrando a vida, em contraponto com a homenagem aos entes queridos que partiram antes de nós, sentimos um certo incómodo contrariando a naturalidade da condição humana: nascer, viver e morrer. Palavras de duas sílabas, curtas, tal como o ciclo de qualquer vivente. Rejubilamos com os ciclos naturais da natureza. São festejados com rituais quase sagrados. Desmedidos à medida que percecionamos o seu significado…
Gosto de cemitérios. Demoro-me, de quando em vez, junto de espaços de gente anónima. Observo os rostos, as lápides, atento nas datas de nascimento e morte. Calculo a idade de vida. Também acontece emocionar-me quando a vida desse alguém fez parte da minha…
Por isso gostava de ver rostos sorridentes no dia dos finados. Sem vergonha. Sem culpa. Sem o cinzentismo do vestuário, destoando do branco florido e da luz tremeluzente  das lamparinas. Mas a verdade é que até as conversas se falam em surdina. Rostos taciturnos, fechados. Felizmente que a alma, invisível aos olhos, pode celebrar a vida dos que partiram, evocando o que nos foi gratificante partilhar.
Nestes dias, a vida ganha mais vida. Tão só porque o meu olhar se abaixa, se afunila e os rostos dos ausentes me transportam ao seu tempo. E são tantas as vidas que me convidam para a sua mesa…

Odete Ferreira – 01-11-15